ONG dá carroças elétricas para catadores levarem até 500 kg de material reciclável

Modelo foi projetado pelo Pimp My Carroça, tem ‘modo turbo’ para subidas e deve aumentar a renda dos profissionais da área

O percurso de 12 km que Fábio Gonçalves, de 63 anos, faz todos os dias para catar materiais recicláveis e revender em ferros-velhos é duro e cansativo. Mas poderia ser pior sem a ajuda da carroça elétrica, que permite que ele carregue mais peso e circule com mais facilidade pelas ruas de São Paulo, na comparação com uma carroça “convencional”.

Catando materiais pelas ruas de Guaianases, distrito da cidade de São Paulo, ele conta que ganhava R$ 50 por dia com sua carroça sem motor elétrico. “Agora tiro no mínimo R$ 100, com facilidade. Isso porque, com a minha carroça antiga, conseguia carregar no máximo 300 kg por viagem. Essa pode colocar até 500 kg, que levo sem problemas. Até consigo correr com a carroça”, explica Gonçalves.

A carroça elétrica faz parte do projeto “Carroças do Futuro”, iniciado em 2019 pela organização não governamental “Pimp My Carroça”. A ONG foi fundada em 2007 por Thiago Mundano com o objetivo de trazer reconhecimento e suporte para os profissionais de reciclagem.

A carroça elétrica ainda está na fase de protótipo. O único modelo disponível está sendo testado ao longo deste ano, nas mãos de cinco catadores (30 dias com cada um). O objetivo é, ao longo de 2022, entregar 40 desses veículos aos profissionais de reciclagem cadastrados no projeto.

“O objetivo é desenvolver os protótipos elétricos, que não sejam poluentes e sirvam como alternativa à tração humana. Essa carroça aprimora a principal ferramenta de trabalho dos catadores. Assim, melhoramos as condições de trabalho, renda e qualidade de vida, além de favorecer a coleta de materiais recicláveis”, conta Adriane Andrade, coordenadora do Carroças do Futuro.

Gonçalves foi o primeiro selecionado para testar o protótipo. Por ser idoso e ter problemas cardiorrespiratórios, ele tem dificuldades de puxar uma carroça convencional. A diferença para a elétrica é que o arranque pode ser feito usando o motor, em vez de a força do próprio catador. O conceito é semelhante ao adotado em bicicletas elétricas.

De acordo com Andrade, muitos desses profissionais apresentam hérnia, problemas nos joelhos e dores no abdômen, devido à força que fazem para mover as carroças. O objetivo do Carroças do Futuro é melhorar a condição de trabalho desses profissionais, para que além de faturar mais, eles possam ter melhor qualidade de vida.

Catador desde os 8 anos, Gonçalves é de Campo Belo (MG), veio à São Paulo com 25 anos e confessa que o projeto mudou sua vida. “Estou ganhando bem mais. Antes tinha de escolher se comia ou pagava as contas”, conta.

Ainda é possível selecionar quatro níveis de potência, indicadas de acordo com o aclive das ruas (atributo que Gonçalves adora, já que as subidas são os pontos mais difíceis para carregar sucata). A carroça elétrica atinge a velocidade máxima de 8 km/h. Além disso, há função ré. Já a bateria possui autonomia de 4 a 6 horas, além de poder ser carregada em tomadas comuns.

A otimização que a carroça elétrica provoca no trabalho de Gonçalves é notória. Enquanto acompanhávamos um dia de trabalho do catador, ele foi parado por um homem, que avistou uma máquina de lavar dentro da carroça e ofereceu R$ 60 pelo eletrodoméstico.

A máquina logo foi parar no porta-malas do cliente. “Esse valor é mais do que eu fazia em um dia de trabalho. Se eu estivesse com minha carroça sem motor elétrico, não ia conseguir carregar a máquina e fazer essa venda”, disse o catador, alegre por fechar o negócio.

A carroça elétrica tem freio, buzina, setas, rastreador via GPS, farol dianteiro e traseiro. Mas ainda precisa de alguns ajustes finais até poder ser incorporada pelo projeto.

Além das carroças, triciclos elétricos também estão sendo desenvolvidos pelo Carroças do Futuro com o mesmo objetivo. Esse novo modelo ainda não está pronto para entrar em fases de testes. Tal protótipo suporta cargas de até 180 kg, e possui as mesmas funcionalidades dos demais veículos.

Pilotando a carroça elétrica, Gonçalves teve que deixar de lado sua carroça antiga, apenas movida por tração humana. Mesmo sem motor elétrico, o mineiro diz que o modelo tem seus atributos.

“Coloquei uma caixa de som, quando toca o pessoal já sabe que sou eu. Também pintei minha carroça e escrevi o nome dela: “Trovão Azul”, referência a meu filme preferido (filme policial dos anos 80). Aqui na região todo mundo me conhece e conhece a minha carroça”.

As pinturas foram feitas pelo mineiro, que tem o sonho de trabalhar apenas como pintor (atividade que mais gosta de fazer).

Ele conta que ter uma carroça “bonita e ajeitadinha” faz muita diferença na maneira como é tratado nas ruas, e, consequentemente no seu trabalho. Ele conta que, por ser conhecido por dirigir o “Trovão Azul”, sempre é parado pela região de Guaianases e, dessa maneira, afirma vender bastante sucata.

Pimp My Carroça e a arte urbana

Para quem não possui as habilidades artísticas de Gonçalves, o Pimp My Carroça pode ser a solução. Com objetivo de trazer visibilidade para os catadores, a organização tem diversos projetos, além do Carroças do Futuro. Sua iniciativa principal é a reforma de carroças.

Artistas, principalmente de ruas, acionados pela organização, fazem desenhos e escrevem frases. Aqui, é importante ressaltar que esses trabalhos são feitos também em outros tipos de veículos. “Muitos catadores têm carros. Então, qualquer veículo que chegar, seja carro ou carroça, a gente reforma”, conta Roberto Oliveira, gestor do projeto.

Além de renovar a aparência, o Pimp My Carroça fornece reparos mecânicos para esses automóveis.

Caio César Quirino, que também já testou o protótipo elétrico, teve seu carro e carroça “pimpados” (termo que se refere aos veículos reformados pelo projeto). O automóvel, um Ford Del Rey 1984, ganhou as cores do arco-íris e diversas caricaturas, no final de 2019.

O catador conta que anda cerca de 20 km por dia e, quando sabia que iria carregar materiais mais pesados, utilizava o carro. “Ando na região da Pompeia até a Barra Funda (bairros da Zona Oeste de São Paulo), onde há muitas subidas. Lá fica difícil de empurrar a carroça com tanto peso. Por isso, usava meu carro”, conta.

O Del Rey foi trocado por um Volkswagen Santana 1990, que ainda não passou pelo projeto. Atualmente, o carro está parado, por conta de problemas mecânicos. Assim, Quirino conta apenas com sua carroça para trabalhar. Ela foi reformada, recebeu a coloração rosa e a frase “Reciclando Pensamentos”.

“Quando minha carroça foi reformada, ela ficou com outra aparência. As pessoas ficaram muito mais receptivas, começaram a parar para conversar e tirar fotos. Antes disso, eu era xingado. No trânsito, os carros não desviavam”, desabafa Quirino.

A carroça do catador é famosa por sua pintura, e possui até um perfil nas redes sociais: @eco_jheny. Tal nomenclatura é uma homenagem a esposa de Quirino, Jhenyffer Araújo, mulher trans e também trabalha com o recolhimento de resíduos físicos.

A ferramenta de trabalho do catador foi reformada duas vezes – a segunda recentemente, em agosto deste ano, em edições do Pimp My Carroça que aconteceram na cidade de São Paulo.

De São Paulo para o mundo

A intervenção, porém, já ocorreu em outros estados brasileiros e até fora do país: nas cidades colombianas de Cali, Bogotá e Medellín e também em Quito, no Equador.

Antes da pandemia de covid-19, a reunião acontecia em espaços públicos ou em sedes da ONG. Lá, catadores se reuniam para que suas carroças recebessem reformas estruturais, com a presença de funileiros e borracheiros, e na aparência, com a ajuda de artistas voluntários.

No evento, também havia atrações culturais para entreter os profissionais de reciclagem e atendimentos de saúde e bem-estar, oferecidos por médicos, cabelereiros, massagistas, psicólogos e etc.

“Agora, na pandemia, os eventos ainda acontecem, mas foram todos reestruturados para não causar aglomeração,

Ele explica que a mobilização dos catadores é feita via redes sociais, por meio de parceiros e no conhecido “boca a boca”. Foi dessa maneira que Quirino e Fábio conheceram o projeto: ambos ficaram sabendo através de amigos.

“A ajuda deles melhorou demais meu trabalho. Depois que minha carroça foi reformada comecei a ser chamado com mais frequência para recolher materiais (efeito também do Cataki, app que sincroniza catadores e pessoas que precisam descartar materiais recicláveis). A carroça elétrica também deixa o trabalho mais fácil , ela é muito rápida, e melhora nossa mobilidade”, finaliza Quirino. (Fonte: G1)

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