José nunca foi à escola. Nasceu em uma comunidade pobre, sem saneamento básico. Foi criado por mãe solo de 5 filhos, que buscava a sobrevivência na coleta de resíduos pelas ruas da cidade. Nas vielas por onde os moradores da comunidade circulam, o esgoto corre a céu aberto, expondo a população a riscos de saúde. Logo ali, bem próximo às moradias precárias, estão instaladas pequenas fábricas que produzem poluição de todo tipo, como fumaça e resíduos químicos, sem qualquer tipo de fiscalização. Nas casas, o calor é insuportável devido à falta de estrutura adequada e de arborização.
Mesmo com tantas adversidades, José chegou à fase adulta. Porém, sem estudo, acabou seguindo os passos da mãe e hoje ganha a vida como catador de materiais recicláveis. As condições às quais José foi exposto durante toda sua existência caracteriza o que hoje conhecemos como racismo ambiental.
Embora essa descrição seja hipotética, ela retrata a realidade de milhares de brasileiros que vivem da coleta de resíduos, seja nas ruas ou em organizações de catadores, onde têm contato com materiais sujos, contaminados e perfurocortantes, o que os expõe a um alto risco de acidentes e doenças.
Definições
A visão de racismo e injustiça ambiental começou a ser delimitada no Brasil a partir dos anos 2000, quando representantes de movimentos sociais, sindicatos, ONGs, entidades ambientalistas, pesquisadores, movimentos negros e indígenas se uniram para criar a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), que estabeleceu a definição desses conceitos. Assim, injustiça ambiental foi definida como o “mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”.
Em outras palavras, o racismo ambiental refere-se à distribuição desigual de impactos ambientais negativos, como poluição do ar e da água, desmatamento, presença de lixões e instalações industriais perigosas, que afetam de maneira desproporcional comunidades racialmente minoritárias e de baixa renda. Isso resulta na chamada injustiça ambiental, imposta a comunidades enfrentam uma carga maior de problemas ambientais e de saúde.
Desafios diários
Dessa forma, os catadores de materiais recicláveis estão entre os grupos afetados pelo racismo ambiental, pois além de muitas vezes morarem em locais sem qualquer infraestrutura, frequentemente trabalham em condições precárias, coletando materiais em áreas poluídas e perigosas, como lixões e margens de rios contaminados. Essas áreas muitas vezes ficam próximas a comunidades marginalizadas, tornando os catadores vulneráveis tanto às condições de trabalho quanto a impactos ambientais prejudiciais.
E não estamos falando de um grupo pequeno. Hoje, segundo estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), existem de 800 mil a 1 milhão de catadores/catadoras em atividade no país, que enfrentam desafios diários. Eles frequentemente estão expostos a substâncias tóxicas e perigosas durante a coleta de materiais. Isso pode resultar em problemas de saúde crônicos, como doenças respiratórias, dermatológicas e até câncer.
Os catadores também vivem em constante insegurança financeira, já que a atividade muitas vezes não oferece uma fonte de renda estável. Eles dependem da venda dos materiais recolhidos, que estão sujeitos a flutuações nos preços de mercado, tornando-os economicamente vulneráveis.
A marginalização social e a discriminação também afetam a grande maioria desses profissionais. Muitos catadores relatam situações em que são marginalizados devido à natureza de seu trabalho, o que resulta em estigmas e falta de inclusão.
Como resolver?
No caso específico dos catadores de materiais recicláveis, para combater o racismo ambiental são necessárias medidas multissetoriais. Uma delas é desenvolvimento de políticas de inclusão social e econômica dos catadores, que garantam condições de trabalho seguras e facilitem o acesso a serviços de saúde e educação. Outra ação essencial é a conscientização sobre existência do próprio racismo ambiental e os impactos que ele causa na vida das pessoas.
De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PRNS), de 2010, tanto a iniciativa pública quanto a privada estão obrigadas de investir em práticas sustentáveis que diminuam a geração de resíduos, promovam a coleta seletiva e incentivem a reciclagem. Em tese, essas ações deveriam estimular a cadeia de reciclagem, promovendo o desenvolvimento socioeconômico das organizações de catadores, propiciando a eles melhor qualidade de vida.
Na prática, entretanto, ainda que muitas empresas promovam programas de logística reversa nos mais variados segmentos, cumprindo suas responsabilidades, a grande maioria das gestões municipais sequer implementaram o serviço de coleta seletiva de porta a porta. A pesquisa Ciclosoft 2023 – Panorama da Coleta Seletiva no Brasil, encomendada à MAPA.SA pelo Cempre (Compromisso Empresarial para a Reciclagem), mostrou que dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 1.211 oferecem serviços efetivos de coleta seletiva. O levantamento considerou que realizam coleta seletiva efetiva, os municípios onde o serviço atende a, no mínimo, 50% de sua população (rural e urbana), na modalidade porta a porta. Isso significa que 21,7% dos municípios se enquadram nesse critério de avaliação e que, somente 35,9% da população são, de fato, atendidos com coleta seletiva porta a porta no país.
Como se vê, a despeito do que preconiza a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), há uma morosidade na implantação efetiva de políticas públicas que promovam a coleta seletiva e destinação correta de resíduos, criando um cenário nocivo ao meio ambiente, à sociedade e que corrobora o racismo ambiental. Esse cenário complexo evidencia que o racismo ambiental é um problema social profundo, que requer ações conjuntas e coordenadas. Para alcançar uma sociedade mais justa e equitativa, é fundamental que todos reconheçam a necessidade de proteger as comunidades mais vulneráveis, melhorando as condições de vida, não só dos catadores, mas de toda a população que sofre com impactos tão negativos.
Antes de encerrarmos, é importante registrar que nem só de mazelas vive essa categoria. Nas últimas décadas muitos desses profissionais se organizaram, lutaram juntos e obtiveram melhorias e grandes conquistas. Em contraponto, em breve apresentaremos essa outra perspectiva em outro artigo. Até lá!
Superando desafios, catadores somam conquistas e lutam para obter novos avanços